Costumo sair no Oriente, mas hoje
saí em Santa Apolónia, e o meu olhar ficou preso numa caravela que ali se
encontrava atracada, com as suas linhas vincadas, num contraste chocante com o
cruzeiro moderno e gigantesco à sua frente ancorado. Deixei-me embalar pelas
pequenas ondas que batiam no casco do veleiro e o meu pensamento depressa
largou âncoras e preso nas velas desta caravela, aventurou-se pelos mares.
Tempos havia, em que por oceanos se
navegava, numa cruzada sem destino, nas trevas escondido, esperando encontrar
um mundo novo, agarrar a glória sem brasão, ser por instantes dono de terras
sem rei, ser senhor de reinados sem leis, ser um entre tantos aldeões de feudos
perdidos em pedaços de mato herdados, sem saber bem como plantados, por gentes
ausentes, onde de quando, em quando, se descobriam mentes brilhantes, poetas
errantes, ou apenas alguém, destemido, em busca do desconhecido. Esses, seriam
caminhos trilhados, em mares navegados, mas não eram caminhos de gente, nem
caminhos pensados, eram apenas mares, eram apenas marés, eram apenas pedaços de
carne lançados num mar de ondas desgovernadas, de lendas atraiçoadas, de ventos
desordenados, e jamais compreendidos. Eram no fundo apenas um entre tantos
outros caminhos que poderiam ser aqui contados, mas nunca entendidos, pois dos
sentimentos presentes nas almas de tais corpos á sua sorte abandonada, não reza
a história, nem a glória. E se algum poeta ousou, em tempos aventurar-se, na
escrita de tais sentimentos, por certo se deparou, com a ira de quem não sente,
com a incompreensão de quem não entende, que a terra é apenas terra se nela não
estiverem as marcas que alguém deixou, ao longo de anos. A marca dum pé que
caminhou em busca de vida, a marca duma mão que pecou, tentando buscar uma
saída, para dramas vividos, lágrimas de olhos sentidos, tragédias de corpos
escondidos pela vergonha de terem ousado se erguer contra leis que um dia um
Senhor inventou, contra regras que um dia um Padre ditou, baseado apenas e tão só
naquilo em que sempre acreditou e jamais questionou. Os tempos eram marcados
pelos mares navegados, pelos continentes conquistados e pelo sangue derramado,
mas nunca, se escreveu, sobre a nobreza de sentimentos de quem amou, sobre a
pureza da dádiva com que a esse amor se entregou, pois tais escritas estavam
apenas destinadas aos poucos que a Nobreza contemplou. Se Colombo perdoou a
quem um dia amou sem ver retribuído seu amor,se a caravela em que embarcou, no
seu convés albergou amores traídos, e sonhos perdidos, nas faces dos
marinheiros marcados, e nos seus gestos denunciados, nunca ninguém reparou. Por
amor, se errou, e nos erros se naufragou, mas jamais alguém revelou, em poemas
ou canções, o que naquele tempo realmente se passou.
Os tempos, esses são outros e as
razões que levam os barcos aos mares, as pessoas a navegar, e a nesses mesmos
se aventurar, são também outras. Ouço, o bater das águas no casco, o silêncio
das velas meticulosamente esticadas, por estas mãos cansadas, e contemplo este
vazio tão imenso de águas recheadas de vida. Se nenhum meio mais houvesse para
chegarmos á outra margem, se nenhuma ponte existisse, se nenhum avião voasse,
então teríamos mesmo dos mares cruzar, como antes tantos outros cruzaram, e
talvez nas suas águas, perdêssemos a altivez, esquecêssemos a mesquinhez, e
juntos tentássemos sobreviver á travessia, e então, talvez, apenas talvez, nos
conhecêssemos o suficiente para entender, que somos todos iguais, com as mesmas
fraquezas, as mesmas riquezas, o mesmo coração e a mesma paixão, iguais no que
nos move e nos faz lutar para vencer o que sozinhos jamais saberíamos
enfrentar. Um por todos e todos por um, assim rezaria a história. E assim
rezaria a glória, ou apenas uma lenda, desconhecida. E se quem fica em terra
olhasse o mar não com angústia ou desalento mas antes com esperança, pintando a
lua de tons azulados, cortando as suas águas travessas a mares atados ou simplesmente resgatando o sol, que ficou
gravado na alma nos sonhos de criança. E neste tão simples sentir, retornaria a
casa já não se deitaria na cama cansada, ou discutindo com quem se deita a seu
lado, mas apenas e somente se perderia na noite calma. Olho á volta e tento
compreender o que impele os mares, os que os faz voltar, o que os faz erguer em
vagas descontroladas, como se dum pedido de socorro se tratasse. Este mar que
desconhecemos e que desafiamos, dia após dia, sem nunca nos darmos conta que na
sua imensidão nos perdemos quando nos queremos encontrar. O apito do comboio, que vai numa nova viagem,
já sem mim, trouxe-me de volta a terra, sem antes deitar um último olhar aquela
caravela, que ostenta a sua vela, sem receio de mostrar quem é.
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