quinta-feira, 12 de abril de 2012

Por mares nunca (antes) navegados


Costumo sair no Oriente, mas hoje saí em Santa Apolónia, e o meu olhar ficou preso numa caravela que ali se encontrava atracada, com as suas linhas vincadas, num contraste chocante com o cruzeiro moderno e gigantesco à sua frente ancorado. Deixei-me embalar pelas pequenas ondas que batiam no casco do veleiro e o meu pensamento depressa largou âncoras e preso nas velas desta caravela, aventurou-se pelos mares.
Tempos havia, em que por oceanos se navegava, numa cruzada sem destino, nas trevas escondido, esperando encontrar um mundo novo, agarrar a glória sem brasão, ser por instantes dono de terras sem rei, ser senhor de reinados sem leis, ser um entre tantos aldeões de feudos perdidos em pedaços de mato herdados, sem saber bem como plantados, por gentes ausentes, onde de quando, em quando, se descobriam mentes brilhantes, poetas errantes, ou apenas alguém, destemido, em busca do desconhecido. Esses, seriam caminhos trilhados, em mares navegados, mas não eram caminhos de gente, nem caminhos pensados, eram apenas mares, eram apenas marés, eram apenas pedaços de carne lançados num mar de ondas desgovernadas, de lendas atraiçoadas, de ventos desordenados, e jamais compreendidos. Eram no fundo apenas um entre tantos outros caminhos que poderiam ser aqui contados, mas nunca entendidos, pois dos sentimentos presentes nas almas de tais corpos á sua sorte abandonada, não reza a história, nem a glória. E se algum poeta ousou, em tempos aventurar-se, na escrita de tais sentimentos, por certo se deparou, com a ira de quem não sente, com a incompreensão de quem não entende, que a terra é apenas terra se nela não estiverem as marcas que alguém deixou, ao longo de anos. A marca dum pé que caminhou em busca de vida, a marca duma mão que pecou, tentando buscar uma saída, para dramas vividos, lágrimas de olhos sentidos, tragédias de corpos escondidos pela vergonha de terem ousado se erguer contra leis que um dia um Senhor inventou, contra regras que um dia um Padre ditou, baseado apenas e tão só naquilo em que sempre acreditou e jamais questionou. Os tempos eram marcados pelos mares navegados, pelos continentes conquistados e pelo sangue derramado, mas nunca, se escreveu, sobre a nobreza de sentimentos de quem amou, sobre a pureza da dádiva com que a esse amor se entregou, pois tais escritas estavam apenas destinadas aos poucos que a Nobreza contemplou. Se Colombo perdoou a quem um dia amou sem ver retribuído seu amor,se a caravela em que embarcou, no seu convés albergou amores traídos, e sonhos perdidos, nas faces dos marinheiros marcados, e nos seus gestos denunciados, nunca ninguém reparou. Por amor, se errou, e nos erros se naufragou, mas jamais alguém revelou, em poemas ou canções, o que naquele tempo realmente se passou.
 Os tempos, esses são outros e as razões que levam os barcos aos mares, as pessoas a navegar, e a nesses mesmos se aventurar, são também outras. Ouço, o bater das águas no casco, o silêncio das velas meticulosamente esticadas, por estas mãos cansadas, e contemplo este vazio tão imenso de águas recheadas de vida. Se nenhum meio mais houvesse para chegarmos á outra margem, se nenhuma ponte existisse, se nenhum avião voasse, então teríamos mesmo dos mares cruzar, como antes tantos outros cruzaram, e talvez nas suas águas, perdêssemos a altivez, esquecêssemos a mesquinhez, e juntos tentássemos sobreviver á travessia, e então, talvez, apenas talvez, nos conhecêssemos o suficiente para entender, que somos todos iguais, com as mesmas fraquezas, as mesmas riquezas, o mesmo coração e a mesma paixão, iguais no que nos move e nos faz lutar para vencer o que sozinhos jamais saberíamos enfrentar. Um por todos e todos por um, assim rezaria a história. E assim rezaria a glória, ou apenas uma lenda, desconhecida. E se quem fica em terra olhasse o mar não com angústia ou desalento mas antes com esperança, pintando a lua de tons azulados, cortando as suas águas travessas a mares atados ou  simplesmente resgatando o sol, que ficou gravado na alma nos sonhos de criança. E neste tão simples sentir, retornaria a casa já não se deitaria na cama cansada, ou discutindo com quem se deita a seu lado, mas apenas e somente se perderia na noite calma. Olho á volta e tento compreender o que impele os mares, os que os faz voltar, o que os faz erguer em vagas descontroladas, como se dum pedido de socorro se tratasse. Este mar que desconhecemos e que desafiamos, dia após dia, sem nunca nos darmos conta que na sua imensidão nos perdemos quando nos queremos encontrar.  O apito do comboio, que vai numa nova viagem, já sem mim, trouxe-me de volta a terra, sem antes deitar um último olhar aquela caravela, que ostenta a sua vela, sem receio de mostrar quem é.

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