quinta-feira, 12 de abril de 2012

Uma folha branca


A gare está em obras e por isso só existe um lugar onde se pode entrar para o comboio, na primeira carruagem. Ao contrário do que se possa pensar a primeira carruagem não é igual ás outras, talvez por em tempos ter sido de primeira classe, na altura em que os regionais levavam as senhoras do Porto á capital com os filhos, envoltas em mordomias. Tem menos lugares, e uns bancos junto a uma casa de banho de um lugar só. Num desses bancos um homem de bata branca de médico e um estetoscópio ao pescoço, parece deslocado desta realidade, como se não pertencesse a esta cena ou ato. Olha com ar ausente para quem entra, e volta a sucumbir aos pensamentos que decerto o atormentam, pela expressão que traz estampada no rosto desalinhado. Nas mãos apenas as chaves de um carro e uma folha branca, rasgada de uma sebenta.
Não se lembra de ter entrado no comboio, nem de onde veio, mas recorda-se das últimas 24 horas de forma tão intensa que chega a temer ter ficado preso neste pedaço de tempo.
O dia estava escuro, como estava sempre que saía de casa, ou pelo menos assim lhe parecia.
Sempre a mesma frase "Bom dia Sr.Doutor". Olhou o porteiro e sorriu, não por simpatia mas porque assim manda a etiqueta.
Entrou no carro e arrancou sem grande vontade. Olhou pelo retrovisor e viu a torre, imponente como todo o império que construiu. Devia sentir orgulho, mas só sentia mágoa. O vazio duma vida sem cor.
De novo a mesma frase "Bom dia Sr.Doutor". Olhou para as enfermeiras, perdidas entre papeis e seringas,  e pensou na frieza que os hospitais aparentam. Como ele. Tratam de corpos mas não sabem quem são as almas que os habitam. Vestiu a bata e começou a sua ronda. Pensou nela, pensou em tudo o que disseram e pensou naquilo que nunca a deixou dizer. Não podia. Nunca iria poder. Ela não compreenderia, e se compreendesse, conseguiria ele alguma vez mostrar-lhe o que lhe ia na alma. Não. Não arriscava. Preferia não ir ao céu para não correr o risco de cair a terra! Estava demasiado em jogo.
Olhou para o homem ligado ao ventilador. Tinha pouco mais de 20 anos. Um acidente de automóvel tirou-lhe tudo o que tinha na vida, só não lhe tirou a vida. Que ironia. Parecia a história da sua vida, ao contrário. A medicina tinha-lhe dado tudo o que tinha na vida...menos uma vida. Aquela que ela resgatou, e lhe ofereceu. Aquela que ele orgulhoso não vendo a grandiosidade da oferta, cego, recusou.
O apitar do Bip tira-o do pensamento tão pouco usual em si. Encolhe os ombros e dirige-se para o Bloco de Urgências. Na maca, uma mulher com cerca de 35 anos, traz a cara coberta de sangue. Um acidente de automóvel, a caminho do Hospital, relacionado com uma paragem cardíaca. Começa a fazer a reanimação, enquanto ouve o relatório dos técnicos do INEM que a trouxeram, mas a paciente teima em não responder.
A enfermeira da secretaria, entra e pergunta o nome da paciente. E num segundo o mundo para, quando ouve as palavras que lhe caiem em cima como facas afiadas diretas ao coração. As mãos ficam paralisadas, imóveis e geladas, sobre o corpo sem vida. De repente sente-se perdido numa escuridão de pensamentos onde o nome dela faz um eco ensurdecedor nos seus ouvidos.
Perdendo a compostura que lhe é habitual, agarra-se a ela, roga-lhe que volte, suplica que o perdoe. O momento apanha de surpresa os restantes médicos e enfermeiras, habituados a um médico frio, distante, exigente, que não perdoava uma  falha, e que ali, naquele instante, cometia a mais grave de todas, envolvendo-se com uma doente!
Mas ele já não via nada, a sua vida morria naquele corpo e ele lutava desesperadamente por resgatá-la, indiferente ao mundo. Os minutos passam e nada. O corpo que jazia perante ele, já não albergava uma alma. Tinha sido tudo em vão. Maldita medicina, pensou, deu-lhe tudo o que tinha e tirou-lhe o que dinheiro nenhum poderia alguma vez lhe devolver. Saiu sem despir a bata, meteu-se no carro, e seguiu sem rumo. Em frente não via nada, nada a não ser uma folha branca, aquela em que lhe devia ter escrito. Nunca lhe tinha pedido nada, mas ontem rasgando uma folha do seu diário onde escrevia textos lindos que ele adorava ler, pediu-lhe que pintasse aquilo que sentia por ela.
E ele não conseguiu esboçar nem um risco, nada, não soube dar cor, a algo que se recusava ver. Olhou para o céu e na tarde de outono que se estende no horizonte, consegue ver tão nítidas, as cores dum dia perfeito. Assim deveria ter pintado, assim a sentia a ela. Tão simplesmente perfeita. Acelerou, e mesmo não olhando o caminho sabia qual o destino, o único onde era simplesmente ele. O carro percorreu a marginal que se estende nas margens da baía de faces espelhadas, ainda dormindo sobre a cumplicidade da lua e abraçada a praia deserta salpicada de pequenas sardas de pegadas. Do outro lado, o mar imenso, de um azul-escuro forte, escondido atrás do nevoeiro tão característico desta terra, insinuando-se em ondas cadenciadas de um branco imaculado, misturando as suas águas revoltas com as doces e cálidas de sua enseada.
Estacionou junto ao cais, e desceu as escadas de pedra, deitando-se em silêncio, como que tentando fundir-se na paisagem. Gostaria de ali ter ficado sem olhar o tempo, até o corpo adquirir a tonalidade das algas, diluindo-se na cor da areia, entranhando-se na textura das rochas, até que por fim os seus olhos despidos de todas as lágrimas pudessem pestanejar sem assustar as gaivotas.
Tão parecido é o amor com a água. Doce ou salgada, correndo em rios, que se esgueiram entre dois vales, sinuosos, beijando aqui e ali as margens fartas de arvoredos. Também nele mergulhamos e nos perdemos, trazemos o trago salgado, o rosto molhado e na alma gotas de momentos que jamais esqueceremos. Saciamos a nossa sede de companhia quando bebericamos aqui e ali no seu estado mais puro, isento de cor e sabor, não deixa saudade mas acalma a secura de uma travessia pelo deserto da solidão.
Navegamos, ostentando a bandeira da paixão, sem leme nem comandante, e á deriva naufragamos tantas vezes, buscando depois aquele recanto, aquela praia tão conhecida em que ele amor dormita, se despe de paixão e se veste de amizade.
Nasce em nós e desagua por entre ramais de conhecimento em oceanos de carinho, onde em vagas constantes, nos arrasta sobre dunas de prazer uma e outra vez, sobre a cumplicidade da lua.
Se for pequeno, e cair em pequenas poças, evapora-se, é efémero e não deixa mais que um desconforto que escorre pelos olhos com pouca convicção, sem deixar rasto ou lembrança.
Sacudiu as mãos da areia, e os pensamentos da alma, e levantou-se caminhando descalço sobre as águas frias. Um dos grandes prazeres da vida, uma praia num entardecer de Outono. Olhou ao longe o navio cruzeiro que se preparava para cruzar o oceano, e imaginou-a lá, a sua doce e querida Madalena, contemplando apaixonadamente este mesmo mar, os ombros envoltos no abraço de alguém que decerto a mereceria, olhando-o com ternura do fundo daqueles olhos avelã tão únicos. Assim deveriam todos amar, sem posse, apenas desejando a felicidade para quem se ama, assim o amava Madalena, nunca lhe exigindo nada, aceitando-o como era, e ele brincando com a vida foi adiando o que nunca entendeu ser já parte dele. Agora apenas lhe restava a folha branca, aquela folha em que tantas vezes brincando ela lhe pediu que pintasse com as cores do seu amor. 

A força do sentimento


Todas as noites coloco o despertador para as 6 horas e 10 minutos, e ainda que intencionalmente o faça com o objetivo de me deliciar com o prazer da preguiça que vai até alinhar os dois ponteiros do relógio, a verdade é que o meu corpo e mente têm na realidade um horário muito próprio, e alheios á minha vontade, alinham o seu despertar para as 10 para as 6 . Ainda tentei ser irreverente e não ceder a tais caprichos, mas como bem sabemos somos meros escravos  de um corpo e mente com vontade própria. Levanto-me, e com os olhos ainda semifechados, abro as portadas que dão para o alpendre, faça chuva, vento ou sol, com ou sem claridade, sento-me na velha cadeira de verga, e fico num estado quase patético de contemplação da paisagem que me é oferecida, fumegante como o chá que trago na caneca, rica de sabor como o earl-grey que se dilui em labaredas castanhas na água quente perfumando-a para meu deleite. No telheiro da churrasqueira, as telhas do beiral não estão tapadas, e a azáfama do vai e vem de pássaros é especialmente notável de madrugada. Vêm das árvores, direitos às telhas, e acertam sem vacilar nas curvaturas onde fazem os seus ninhos. È verdade que este fenómeno é comum de ver em vários locais, desde que observemos. Existe uma diferença enorme entre olhar e observar. O primeiro é um ato pontual, de segundos, em que a cabeça analisa imagens que lhe são transmitidas pelos olhos e lhes atribui uma informação. Já observar é um ato explicito, em que procuramos as imagens, deixamos o olhar preso nos pormenores, e fazemos questão de analisar cada uma das imagens, envolvemos o sentir,  damos voz à alma e por muito raciocínio que coloquemos nessa observação sabemos, que terá sempre um toque menos objetivo mas não por isso menos real daquilo que não queremos apenas ver mas ser capazes de descrever.
Li um dia destes sobre o eterno desejo do homem de conseguir voar, e descobri que na realidade os pássaros voam, não por baterem as asas, mas por usarem as características das mesmas para planar. O bater das asas serve para dar impulso e contrariar a força da gravidade, mas o voar consiste exatamente nesse planar, aproveitando as massas de ar que se formam por debaixo da curvatura das asas para manter o corpo a uma certa altura e em movimento. E se é verdade que nasceram com uma fisionomia que lhes permite planar sem esforço, também é verdade que para se manterem imóveis acima do solo requere um enorme esforço de bater as asas, que quando comparado com o seu tamanho é ainda mais inacreditável, que o consigam fazer durante tanto tempo. Quando as crias estão no ninho, os pais permanecem á entrada, mesmo por debaixo da telha, batendo freneticamente as asas, tentando manter uma posição estável enquanto seguram a comida no bico e a colocam nos bicos minúsculos de cada um dos filhos. Fico ali presa naquela imagem, a observar a forma como conseguem manter-se na mesma posição e o esforço que esse gesto deverá exigir dos seus pequenos corpos. Vão e vêm repetidamente sem nunca mostrarem sinais de cansaço. Não conheço a sua linguagem, mas decerto daria para notar algum desprendimento dos progenitores perante o piar desenfreado dos filhos a pedirem alimento, caso se cansassem desta rotina, e no entanto todos os dias, ali estão, num esforço físico descomunal, e ao mesmo tempo planando com uma suavidade e beleza invejável.
Coloco os pés para cima e repouso a cabeça nos joelhos, afastando o olhar desta correria de bater de asas para a linha da autoestrada, onde os carros passam a um ritmo já bastante cadenciado. Daqui a alguns minutos também eu serei mais um carro a passar em mais uma estrada, não será uma viagem bonita como o planar do pássaro, mas na realidade faço a viagem pelos mesmos motivos, garantir o sustento das crias. Não o faço por obrigação, como decerto não o farão eles, mas faço-o por amor. Uso a palavra que um dia alguém inventou para denotar um sentimento que não tem tamanho, não tem princípio nem tem fim. Não tendo forma, preenche-nos, e embora sem descrição exata, sentimo-lo com todos os seus contornos. È um privilégio nosso, a criação de palavras para descrever atos, sentimentos e objetos, mas agora que penso na palavra acho que a mesma me parece escassa para a forma como os animais de forma tão singular e simples demonstram uma devoção, aqueles por quem nutrem esse sentimento, alheios às suas próprias necessidades, inconscientes do esforço que exige a prática do mesmo.
A capacidade de analisar e catalogar sentimentos, vem com um efeito secundário de os tentar contornar, dimensionar, evitar e temporizar. Reduzimos o mais puro sentir e consequente agir a um pré e pós sentimento…passamos a infância toda a ser ensinados a controlar os sentimentos e depois passamos o resto da vida em busca daquilo que outrora fora genuíno e puro. A consciência da dor faz com que andemos na vida carregados de palavras que não nos dizem mais do que outras palavras, faz com que evitemos caminhos onde o sentimento reina porque sabemos que aí, nesses lugares, as palavras são consumidas pelo silêncio que cobre a cumplicidade dos corpos que se entregam num diálogo implícito, e o tempo é apenas um rio que corre vezes sem conta debaixo da mesma ponte. Controlamos o tempo mas nunca temos tempo, manipulamos os sentimentos mas nunca o entendemos, e achamos que todo e qualquer gesto ou ato deve ser catalogado com base no esforço e tempo que exige. A vontade, aquilo que nos devia mover, passou a ser determinada, quando devia ser um vento que soprava e nos empurrava para sentires desmedidos, atos imprevistos, e gestos genuínos.
Diz-se que a vontade move montanhas, e eu sei, porque o sinto todos os dias de manhã quando acordo, e me deixo levar pelo pensamento num planar tão profundo que sinto que os braços abrem como que abraçando a Vida, e chego ao fim do dia, sentada naquela mesma cadeira, sem os pássaros por companhia, mas um luar que se estende como um fio ao longo do horizonte, com a certeza de ter colocado os pés na terra, e caminhado com o coração nas mãos, um sorriso na alma e a força de um sentimento que não é passível de ser medido com uma ou muitas palavras.
Posso não saber voar no sentido da palavra como a conhecemos, mas afinal voar não é apenas a palavra, é aproveitar o que a vida nos dá, e usar aquilo de que somos feitos para chegar mais longe...posso voar, vencer a gravidade do supérfluo, e planar em cada sopro de sentimento que não controlo, apenas bebo, ávida, num brinde diário ao tempo sem hora marcada.

Lembra-te de mim


O comboio parou, já lá vão longos minutos, e ao longe vejo uma pequena povoação onde a torre da igreja se ergue no fim de uma rua que sobe..por alguma razão, a minha imaginação leva-me a um lugar que não conhecendo depressa faço meu
Naquela rua que sobe da Igreja e curva no riacho, antes de chegar á avenida que atravessa a pequena vila da Lousiga, está um prédio encaixado entre duas casas, que para quem não soubesse pareceria mais uma casa, mas era na verdade uma moradia bi-familiar. Foi construído nos anos 30, para dois irmãos,  que tendo ido para a guerra venderam a dois casais amigos em inicio de vida. Seria apenas mais uma entre tantas outras casas, em tantas outras ruas , e em qualquer lugar do mundo, mas a historia que aquelas paredes abraçam é especial demais para que seja apenas mais uma casa.
Os casais eram amigos de colégio, casaram no mesmo dia, e viveram em partilha os momentos de ansiedade na espera dos filhos tão desejados. Um teve um rapaz, logo após o casamento, de nome Leonel. Leonel era um menino loiro de olho azul, acarinhado pelos pais e os  vizinhos amigos. Desde cedo preferiu a calma do seu quarto ás brincadeiras de rua, mostrando uma aptidão especial pela música. Os pais orgulhosos, compraram um piano que o menino tocava dia após dia, aprendendo sozinho melodias que ouvia na rádio. Demorou 7 anos até que os vizinhos tivessem um filho, ou melhor uma filha, de nome Madalena. Era uma bébé linda, e quando os amigos trouxeram a menina a casa de Leonel para este a conhecer, o menino ficou preso naquele olhar profundo dos olhos cor de mel. O quarto do Leonel era paredes meias com o quarto de Madalena, ainda que em casas distintas, e a verdade é que a única forma de manter a bébé calma e sem chorar era quando Leonel tocava piano.
Os anos passaram, e os dois foram companheiros de brincadeiras até ao dia que Madalena foi enviada para um colégio interno , dia a partir do qual Leonel nunca mais a viu. Pensava nela muitas vezes, e à medida que ia crescendo imaginava-a já mulher, provavelmente com longos cabelos castanhos saltitando de um lado para outro como uma bailarina e com aquele sorriso que sempre trazia nos lábios quando eram ainda meninos. Soube pelos pais que numa viagem de curso tinha conhecido o noivo e estaria prestes a casar-se. Embora o entristecesse a certeza de que jamais poderia ser mais que seu amigo, ficou feliz por saber que ela era feliz. Não a via há mais de 12 anos, mas sabia que no dia que ela entrasse pela porta de casa a reconheceria.
Mas a vida nem sempre é como imaginamos, e quando Leonel tinha 25 anos, acabado de sair do conservatório e com um emprego como professor de música no liceu,  o pai que tinha sido o grande pilar da família, foi morto a tiro por um miúdo embriagado, que devido à idade não foi preso mas apenas enviado para uma casa de correção. Nesse dia, Leonel perdeu-se, ficou de mal com o mundo, de mal com Deus e o destino, e acima de tudo sem esperança nas pessoas.
Entregou-se á bebida, perdeu o emprego e era um trapo que se arrastava entre a casa onde vivia com a mãe doente e o café do Tio Herminio. Em alturas de lucidez, sentava-se nos degraus olhando a porta de casa de Madalena, lembrando os momentos em que ambos eram felizes e a vida era apenas um caminho que percorriam sem preocupações. Com o passar dos meses a mãe piorou e acabou por morrer.
No dia do funeral, Leonel estava sentado encostado á parede quando a viu subir as escadas. Trazia um vestido azul escuro e um casaco de malha branco. Nos braços envolto numa manta azul clara, um bebé, e nos olhos, nos olhos trazia o olhar que sempre teve da cor de mel e decerto sabor igual, pelo menos sempre os imaginou assim. Esboçou um leve sorriso quando o viu, e Leonel baixou os olhos envergonhado, pelo estado em que se encontrava. Tinha umas velhas calças de bombazine cinzentas, uma camisa beije desalinhada, o cabelo despenteado, a barba por fazer e os olhos vermelhos e ausentes. Mas Madalena não pareceu se importar. Colocou o bebé nos seus braços, e em silêncio entrou na casa dos pais. Leonel ficou ali parado, olhando aquela bebé linda, de olhos cor de mel como os da mãe, o mesmo sorriso, e lembrou-se do dia em que tinha tido a ela nos seus braços também bebé, no dia em que  se apaixonou pela primeira e última vez. Olhou para a porta, esperando que ela viesse buscar o bebé, mas ouvia a sua voz falando pausadamente com os vizinhos, sem sequer olhar para trás. Apesar do seu aspeto deplorável, Madalena viu apenas o Leonel que sempre conheceu, viu a sua alma e não o que trajava. Sentiu-se invadir por uma sensação que não sabia explicar. Depois de tantos anos, sabendo como ela sabia decerto pelos pais os problemas que ele tinha com a bebida, e entregou-lhe assim, sem perguntas e sem dúvidas o filho nos seus braços magros e sujos.
Passado alguns minutos, Madalena voltou, falaram um pouco, ela mais que ele, sobre o que fazia , onde vivia, e recordaram a infância. No dia seguinte Madalena partiu, e Leonel também. Partiu daquele lugar escuro onde se tinha deixado enterrar. Nunca mais bebeu, arranjou a casa que os pais deixaram, a fachada do prédio e depressa começou a receber pedidos de outros vizinhos para pequenas obras. Nunca deixou de tocar, e todas as noites sentava-se no seu antigo quarto, agora uma salinha, a tocar piano. Podia dizer-se que tinha mãos de ouro, para o trabalho e para a música.
Um dia a vizinha  pediu-lhe que arranjasse o antigo quarto de Madalena, porque também queria fazer dele uma pequenina sala de leitura. Leonel sentou-se durante quase uma hora no quarto olhando as paredes. Depois pegou num pincel fino e tinta preta e escreveu , escreveu  e escreveu. No dia seguinte colocou o papel de parede  amarelo gemada, tal como lhe tinham pedido, e foi esta a última vez que Leonel entrou naquela casa.
Os anos passaram, os pais de Madalena faleceram, e com o avançar da idade Leonel deixou de poder trabalhar e ficava os dias na salinha tocando uma e outra vez piano. Madalena tinha perdido o marido num acidente em que também ela sofrera graves ferimentos. Perdeu a vista de um olho e parecia ter desistido de viver. A filha única, dedicada de corpo e alma à profissão de médica, decidiu voltar para a vila, esperando que com pessoas que conhecesse a mãe reagisse. Quando entraram na casa, Madalena foi direta ao seu antigo quarto, sentou-se numa poltrona verde e com os dedos enrugados tocou no cachimbo que estava na mesinha ao lado. O seu pai sempre fumou cachimbo e era assim que o recordava sentado na poltrona fumando o seu cachimbo e contando-lhe as suas aventuras em Africa. Embora não tivesse melhorias, a verdade é que Madalena sempre sorria quando de manhã a sentavam naquela salinha e era sempre renitente que ao fim do dia ia para a cama. Vendo que a mãe gostava tanto daquele espaço, a filha decidiu colocar mãos à obra e retirar o papel de parede antigo e pintar as paredes de branco, talvez colocar uns quadros com fotografias.
À medida que ia retirando o papel, ia ficando intrigada com as letras que iam aparecendo, palavras, frases inteiras que percorriam em circulo as paredes da pequena sala. Quando terminou, leu e releu as palavras, e embora não lhe fossem a ela dirigidas, sentiu borboletas no estomago, sentiu as lágrimas nos olhos enquanto lia, pensando ler em silêncio sem se aperceber que as palavras lhe saiam pelos lábios como quem sopra bolinhas de sabão.
“ Estas palavras que copio do coração e aqui escrevo, certamente não as lerás, se alguma vez virem a luz do dia, já os meus olhos da cor do mar e os teus da cor da areia se foram deste mundo. Amei-te no dia em que te colocaram nos meus braços bébé e me perdi nas dunas dos teus olhos cor de mel, amei-te em silêncio celebrando tuas vitorias e sofrendo com tuas derrotas, perdi-me e minha alma morreu até ao dia em que colocaste um pedaço de ti nos meus braços e vi os mesmos olhos confiantes. Devolveste-me a esperança nas pessoas, e a vontade de viver e quero que quem venha habitar um dia nesta casa saiba que aqui morou um anjo. Com amor, Leonel”
Passaram alguns minutos até voltar a colocar os pés assentes no chão de madeira, olhou a mãe e viu as lágrimas que lhe corriam pelo rosto, e viu nos olhos tão iguais aos seus o que há muito tempo não via, vida. Sentou-se no chão, segurando as mãos trémulas, em silêncio, até que a mãe lhe começou a contar a história de Leonel. A meio, começou a ouvir o som de um piano, do outro lado da parede, e perante o súbito silêncio da mãe, olhou para cima, e viu como tocava na parede acariciando-a e murmurando “Leonel”.
Levantou-se e foi bater na porta ao lado. Na ombreira apareceu um homem alto, de cabelos brancos e uns olhos azuis de um azul profundo enfiados entre as pálpebras enrugadas.  Falou por momentos com ele, como se o conhecesse há muitos anos, e pediu-lhe que viesse a sua casa. Levou-o até a salinha e fechou a porta atrás de si. Madalena ergue os olhos, e Leonel abraçou-os com os seus. Agarrou nas suas mãos e beijou cada um dos seus dedos com a delicadeza de quem beija as pétalas de uma rosa para que estas não caiam. Deitou a cabeça no colo dela e ficaram ali, em silêncio, não se sabe quanto tempo, pois o tempo parou, pois as suas passadas seriam excessivamente ruidosas e podiam perturbar a melodia perfeita daquele encontro.
Naquela rua, que sobe da Igreja e curva no riacho, estão três casas aparentemente triviais, são agora iguais por dentro, mas apenas numa se ouve a mais bonita e perfeita sinfonia da Ternura, apenas numa as palavras escritas se colaram as notas soltas de um velho piano, numa sala agora grande onde um arco traz cravado o testemunho de duas vidas que sempre estiveram destinadas a ser apenas uma.

Assusta-me perder algo importante


Na gare de um apeadeiro, caminhando lado a lado, meio desajeitados, dois corvos olhavam com uma certa displicência para as carruagens do comboio que passava, como quem observa uma nuvem passageira sem lhe dar qualquer importância. Apenas uma observação que me colocou um esboçar de um sorriso no semblante ainda meio adormecido. Não pelo facto em si, mas por me aperceber que ainda consigo observar estes pequeninos nadas que se atravessam perante nós ao longo do dia, e que na sua maioria nem nos apercebemos.
Assusta-me a ideia de na luta desigual para tentar sobreviver me esqueça de viver. De na corrida para me manter à tona de água, me aperceba que aquilo a que chamávamos de sociedade mais não é que um mar de corpos unicelulares, tentando acompanhar as ondas e as marés sem sucumbir á força das correntes. Não me assusta os desafios que sei que todos teremos pela frente, mas algo em mim grita quando percorro as ruas onde antes se cruzavam pessoas, agora desertas e sombria, transformadas em lugares onde foram pilhadas as reservas de compaixão, de respeito, de consciência e de solidariedade, deixando ficar apenas a mágoa, a desilusão, o desalento e a tristeza a escorrer ao longo das bermas, arrastando atrás de si os que vão caindo em cada esquina. Gosto de pensar que quando se fala em supérfluo, todos entendem que esse é aquele extra que nos dá um prazer efémero, instantâneo, mas que não deixa recordações sólidas. Que nunca seja considerado supérfluo o tempo que dedicamos a quem gostamos, que nos lembremos que o prazer está na partilha e não na posse de algo que se não existisse jamais deixaria saudade.
Assusta-me quando chego ao fim do dia e não trago nos olhos o olhar de algo ou alguém que me marcou durante o dia, pois percebo que perdi um dia inteiro de oportunidades de viver e observar o que me rodeia. Sentir o frio da sombra de quem se esconde na penumbra da torre dos sentidos sem ousar lá entrar. O desconforto de um fato que não é feito à nossa medida e que nos torna tão incomodamente igual a tantos outros que se levantam, caminham e deitam sem nunca escrever uma única linha naquelas que deviam ser as páginas da nossa autobiografia.
Ainda trago o sorriso daquela imagem, na berma da autoestrada, de dois seres que decerto partilharam uma imensidão de linhas, que viraram em cada pequenino caminho na ânsia de descobrir um lugar por detrás dos campos plantados, das planícies lavradas e dos riachos que fogem do rio em direção aos vales. Imagino-os tocando as asas e olhando-se por cima dos pequenos bicos, carregados de esperança, voando sobre as pedras que se acumulam nos sopés dos montes, e bebericando nas poças que se escondem nos seus socalcos.
Agarro-me a essa imagem tão simples e sacio a sede da alma que se encontra entorpecida, e deixo que retire de cada um dos meus pensamentos e devaneios sonhadores aquela magia que faz de cada dia de cada momento algo especial, que afasta a venda com que as obrigações e responsabilidades  toldaram  o nosso olhar, que enche de ternura o nosso sorriso e de carinho o nosso partilhar.
Assusta-me, mas agarro-me aquele algo que me faz olhar pela janela do comboio nos fins de tarde e ficar extasiada com a bola laranja  que toca o horizonte, que me faz apreciar aquele abraço bem apertadinho que me é oferecido sem nada perguntar, e que me permite ser dona do meu tempo e não escrava do seu pulsar…segundo após segundo, não deixa de ser apenas um pulsar e não é nem nunca será o bater de um coração que nos lembra cada dia e cada instante da bênção que é poder esta aventura da vida disfrutar.

Por mares nunca (antes) navegados


Costumo sair no Oriente, mas hoje saí em Santa Apolónia, e o meu olhar ficou preso numa caravela que ali se encontrava atracada, com as suas linhas vincadas, num contraste chocante com o cruzeiro moderno e gigantesco à sua frente ancorado. Deixei-me embalar pelas pequenas ondas que batiam no casco do veleiro e o meu pensamento depressa largou âncoras e preso nas velas desta caravela, aventurou-se pelos mares.
Tempos havia, em que por oceanos se navegava, numa cruzada sem destino, nas trevas escondido, esperando encontrar um mundo novo, agarrar a glória sem brasão, ser por instantes dono de terras sem rei, ser senhor de reinados sem leis, ser um entre tantos aldeões de feudos perdidos em pedaços de mato herdados, sem saber bem como plantados, por gentes ausentes, onde de quando, em quando, se descobriam mentes brilhantes, poetas errantes, ou apenas alguém, destemido, em busca do desconhecido. Esses, seriam caminhos trilhados, em mares navegados, mas não eram caminhos de gente, nem caminhos pensados, eram apenas mares, eram apenas marés, eram apenas pedaços de carne lançados num mar de ondas desgovernadas, de lendas atraiçoadas, de ventos desordenados, e jamais compreendidos. Eram no fundo apenas um entre tantos outros caminhos que poderiam ser aqui contados, mas nunca entendidos, pois dos sentimentos presentes nas almas de tais corpos á sua sorte abandonada, não reza a história, nem a glória. E se algum poeta ousou, em tempos aventurar-se, na escrita de tais sentimentos, por certo se deparou, com a ira de quem não sente, com a incompreensão de quem não entende, que a terra é apenas terra se nela não estiverem as marcas que alguém deixou, ao longo de anos. A marca dum pé que caminhou em busca de vida, a marca duma mão que pecou, tentando buscar uma saída, para dramas vividos, lágrimas de olhos sentidos, tragédias de corpos escondidos pela vergonha de terem ousado se erguer contra leis que um dia um Senhor inventou, contra regras que um dia um Padre ditou, baseado apenas e tão só naquilo em que sempre acreditou e jamais questionou. Os tempos eram marcados pelos mares navegados, pelos continentes conquistados e pelo sangue derramado, mas nunca, se escreveu, sobre a nobreza de sentimentos de quem amou, sobre a pureza da dádiva com que a esse amor se entregou, pois tais escritas estavam apenas destinadas aos poucos que a Nobreza contemplou. Se Colombo perdoou a quem um dia amou sem ver retribuído seu amor,se a caravela em que embarcou, no seu convés albergou amores traídos, e sonhos perdidos, nas faces dos marinheiros marcados, e nos seus gestos denunciados, nunca ninguém reparou. Por amor, se errou, e nos erros se naufragou, mas jamais alguém revelou, em poemas ou canções, o que naquele tempo realmente se passou.
 Os tempos, esses são outros e as razões que levam os barcos aos mares, as pessoas a navegar, e a nesses mesmos se aventurar, são também outras. Ouço, o bater das águas no casco, o silêncio das velas meticulosamente esticadas, por estas mãos cansadas, e contemplo este vazio tão imenso de águas recheadas de vida. Se nenhum meio mais houvesse para chegarmos á outra margem, se nenhuma ponte existisse, se nenhum avião voasse, então teríamos mesmo dos mares cruzar, como antes tantos outros cruzaram, e talvez nas suas águas, perdêssemos a altivez, esquecêssemos a mesquinhez, e juntos tentássemos sobreviver á travessia, e então, talvez, apenas talvez, nos conhecêssemos o suficiente para entender, que somos todos iguais, com as mesmas fraquezas, as mesmas riquezas, o mesmo coração e a mesma paixão, iguais no que nos move e nos faz lutar para vencer o que sozinhos jamais saberíamos enfrentar. Um por todos e todos por um, assim rezaria a história. E assim rezaria a glória, ou apenas uma lenda, desconhecida. E se quem fica em terra olhasse o mar não com angústia ou desalento mas antes com esperança, pintando a lua de tons azulados, cortando as suas águas travessas a mares atados ou  simplesmente resgatando o sol, que ficou gravado na alma nos sonhos de criança. E neste tão simples sentir, retornaria a casa já não se deitaria na cama cansada, ou discutindo com quem se deita a seu lado, mas apenas e somente se perderia na noite calma. Olho á volta e tento compreender o que impele os mares, os que os faz voltar, o que os faz erguer em vagas descontroladas, como se dum pedido de socorro se tratasse. Este mar que desconhecemos e que desafiamos, dia após dia, sem nunca nos darmos conta que na sua imensidão nos perdemos quando nos queremos encontrar.  O apito do comboio, que vai numa nova viagem, já sem mim, trouxe-me de volta a terra, sem antes deitar um último olhar aquela caravela, que ostenta a sua vela, sem receio de mostrar quem é.

Sensibilidade e bom senso


Nunca duas palavras caminharam tão de costas viradas como estas. Sensibilidade desafia o bom senso e o bom senso poe rédeas na sensibilidade, trava-lhe o instinto, e disseca-lhe cada um dos sentidos que esta desperta. Gostava de ter suficiente bom senso para suplantar os desejos inconscientes da sensibilidade, mas todos sabemos que uma vírgula que mudássemos deixaria de ser nós mesmos e passaríamos a ser apenas uma bonita imagem com ténues e superficiais semelhanças aquela que sempre conhecemos e agora por capricho queremos descartar.
Na verdade é a realidade de todos nós. Consciente ou inconscientemente, todos nos deixamos tocar por estas duas palavras. Gostava de dizer que tenho o dom de expressar em palavras a sensibilidade que me inquieta, gostaria de partilhar o bom senso e beber o que me falta em momentos que devia ser dona do mesmo, e no entanto acabo dela escrava.
Nos dias quentes de verão, ou até primavera, em que sopra aquele vento suave, que é demasiado percetível para ser uma brisa, mas tão suave que a palavra vento parece por demais ríspida para o definir. Não quente, mas fresco, sem ser no entanto frio e desagradável, apenas no ponto em que sentimos a forma como nos acaricia a pele, como desperta os sentidos, como se ali, perante o mundo fizesse descaradamente amor com o corpo que deveria ser nosso. A forma tão terna como nos afasta as madeixas de cabelo dos olhos, como nos contorna os ombros num abraço tão envolvente que parece nos erguer no ar. A forma como cria á nossa volta um ambiente intimo e melodiosamente silencioso, para que possamos nele entrar deixando o tempo á porta, estático, parado e impotente. A sensibilidade está no seu auge nos momentos mais simples como que preenchendo o espaço deixado pela ausência da razão.
Quando enterro as mãos na areia quente, nos dias frios e solarengos de inverno, entre duas dunas de uma qualquer praia deserta, olhando o mar que dança conforme o ritmo da maré para meu total disfrute, e deixo que os pensamentos, perguntas e dúvidas que me levaram aquele lugar mergulhem nas suas águas profundas, sentindo os grãos de areia que me vão escorrendo entre os dedos, em mil e um beijos que carinhosamente me afagam, como um sussurro amigo, uma quietude que afasta a solidão desse momento e a transforma numa cumplicidade só nossa.
Nas alturas em que em desalento procuro um vazio onde descansar, longe de tudo mas sem sair do meu lugar, e me deito no escuro de um recanto, e bebo cada uma das palavras que tocam no meu ouvido, em músicas por outros criadas, mas que naquele instante faço minhas como se eu própria as tivesse escrito, espalhadas em notas que embalam o meu sentir, levando-o para lugares onde os sonhos nem ousam entrar, e a vida já não tem lugar. 
Quando inesperadamente alguém nos toca o braço nu, nos puxa suavemente para si, e nos dá um beijo tão suave que parece apenas um roçar dos lábios, tão longo que parece uma viagem a todos os  sentidos e demais desconhecidos, que nos toca tão fundo que mergulhamos para além dos limites da consciência.
Em todos estes lugares no tempo, onde não há tempo para começar nem tempo para terminar, onde não existe enredo nem história, apenas um sentir tão fundo e ao mesmo tempo tão efémero que tantas vezes acabamos por desvalorizar, colocando-o no mais recôndito do nosso pensamento, é onde a sensibilidade rainha, pega na alma sua serva, e desce a escadaria da torre dos sentidos, desprovida de bom senso, e sem as amarras da razão, e nos leva, sem que possamos resistir, para aquele lugar onde nada mais cabe, nem um suspiro, tão fundo, que sentimos que não conseguimos respirar. Poderia até pensar que tanta sensibilidade era apenas defeito meu, mas sei que não, sei que existe um desalento perante a falta de sensibilidade na imagem de vida supostamente perfeita, que existe uma porta que parece fechada mas que está apenas encostada, existe a consciência dum arrastar de insensibilidade como se dum conceito supérfluo se tratasse, quando a mesma seria como pintar a aguarela um quadro com os contornos perfeitos, mas onde os tons se foram esbatendo ao longo do tempo tornando quase impercebível as cores originais.
Porquê arranjar justificações para esta falta, com o tão maltratado tempo, atribui-se culpas ao tempo como se dele dependesse tudo. O tempo, como sempre se disse, vale pelo que fazemos dele, não é pouco nem muito é apenas tão importante quanto o nome que lhe damos. Não existe tempo, existe momentos que se entrelaçam uns nos outros e que percorremos, passamos ou disfrutamos acompanhados de um sol ou uma lua que os torna mais ou menos luminosos, mas não por isso mais ou menos sentidos. Quem disse que existe um tempo para amar, um tempo para parar, um tempo para ser feliz, e um tempo para ser irreverente. Quem disse que existe um tempo para aprender e um tempo para errar, um tempo para mudar e um tempo para ter tempo?
Resguardamo-nos da inquietude da sensibilidade, agarrando-nos a um tempo que teimamos em calendarizar, a um bom senso que nos serve de guia espiritual, e assim caminhamos cada vez para mais longe daquilo que deveríamos ser, apenas e somente humanos…

A clareza por detrás do olhar


Uma das muitas coisas boas de viver no campo, é que até o dia mais cinzento e frio tem o seu encanto, ou se calhar sou eu que teimo ver em tudo mais do que transparece á vista, talvez por ser uma sonhadora nata, que mesmo com o passar dos anos, dos trambolhões e desilusões, continua a achar que vale sempre a pena continuar esta grande aventura que é viver. Até o simples passar da mão pelo vidro embaciado, os dedos molhados, o pássaro que beberica lá fora numa das muitas pocinhas do pátio, os mil e um tons de cinza que mancham o amanhecer tapando um sol que teima em chegar…enfim…Talvez por ter perdido mais uns minutos neste ritual em que sacio a sede de novidade no preâmbulo do novo dia, por pouco o comboio partia sem mim. Ofegante, entrei na última carruagem e sentei-me sem sequer olhar á volta para escolher o lugar. Só quando pousei as pesadas pastas que carregava reparei que a carruagem estava completamente vazia exceto pela minha companheira de banco, que me olhava curiosamente. Decerto esta era a sua carruagem diária e estaria a imaginar o porque de com tantos lugares me ter sentado exatamente a seu lado. Acomodei os meus pertences aproveitando para a observar. Não devia ter mais de 10-11 anos. Trazia um gorro cachecol e luvas rosa, uma saia de ganga com uns collants azuis-escuros, e um casaco demasiado grande para a sua franzina figura, mas que ostentava com orgulho, talvez por ter sido dado por alguém especial, ou simplesmente escolhido por si. Quando na paragem seguinte entraram mais duas pessoas na carruagem, percebi que as olhava da mesma forma, primeiro com curiosidade, depois esboçando um sorriso, alternando o olhar por quem a rodeava e pela janela onde a paisagem passava como que num filme. Às vezes franzia o sobrolho, outras o sorriso era mais largo, mas reparei que não parava de enrolar e desenrolar o fio do casaco entre os seus pequenos dedos. Por alguma razão o meu olhar não ficou retido nesta imagem, antes fechou-se perante a insistência de uma memória em tomar o leme desta viagem. O comboio era outro, e levava-me invariavelmente ao mesmo lugar, a escola. Sendo o destino tão usual, a verdade é que todos os dias corria com a mesma vontade para o apanhar, e todos os dias desobedecia ás recomendações da minha mãe para que não fosse pela linha, mas era mais forte do que eu, aquele saltitar entre as tábuas , o sentir nos pés o tremer do ferro sempre que o comboio no sentido contrário passava, as linhas cruzadas que por magia mudavam o rumo das pesadas carruagens, os objetos perdidos que se destacavam entre as sujas pedras que envolviam os carris, um sem número de pequenos nadas que saciavam a minha sede de sentir. Já nessa altura me divertia a olhar as pessoas á minha volta imaginando as suas vidas e o destino das suas viagens. Olhei de novo a minha acompanhante, e reparei que tinha tirado uma caneta e um pequeno bloco de papel, onde agora desenhava o que me pareceu ser uma estrada que atravessava uma ponte de pedra sobre uma ribeira em direção a um molho de arbustos. Estranhei a ausência de um personagem, mas percorria com os dedos o esboço da estrada enquanto olhava pensativa para a paisagem que mudava á passagem do comboio. 
Adorava andar de comboio, sentir nos pés o passar das rodas em cima dos carris, os vultos que entravam e saiam da carruagem, o silêncio quebrado por os sons que emitiam, para muitos passariam despercebidos, mas para ela eram mais um pormenor que desejava guardar. Todas as semanas ansiava pelo dia em que ia ter com o pai a Lisboa para a consulta dos olhos. Provavelmente nunca veria muito mais do que já via, mas isso era para ela secundário, pois a pouca visão que tinha era superada pela sua farta imaginação. Aliás considerava-se especial, porque conseguia ver o que aos outros a visão demasiado perfeita lhes negava. Não era a consulta que a entusiasmava, mas a viagem, e hoje era um dia ainda mais especial. 
Vivia numa vila com pretensões a cidade, embora tivesse nascido numa aldeia vizinha onde os avós ainda moravam e o seu lugar predileto para passar férias. A sua casa ficava mesmo em frente á praça de touros, e desde pequena que se lembra de se sentar ao colo do pai na varanda ouvindo os barulhos nos dias de tourada. O pai, achava imensa graça às suas expressões, e dizia-lhe que era uma verdadeira aficionada, palavra que só mais tarde entendeu. A verdade é que todo aquele ritual, os momentos de silêncio em que o forcado se preparava para a pega, as palmas de triunfo, o bater dos cascos do cavalo na terra e até o respirar pesado e selvagem do touro quando é solto para a arena, lhe chegavam com uma clareza que não sabia explicar. Os pais trabalhavam no picadeiro, e todos as tardes quando vinha da escola, sentava-se em cima dos montes de palha e imaginava mil e uma aventuras em cima de uma égua de crista dourada. Só descia do alto do seu castelo de palha quando via chegar o dono da sua égua preferida do estábulo. Vinha todos os dias ás 5 em ponto, conversava um pouco com o seu pai para saber dos seus cavalos, mas era a égua que vinha ver o seu pai a trabalhar. Ela sentava-se ao seu colo enquanto a viam treinar os movimentos de dressage. Era linda, não podendo especificar bem a sua cor, tinha a certeza que era clara, com a crista enrolada numa trança com fitas coloridas, e um cheiro inconfundível. Do dono sabia apenas que tinha caído durante uma prova de saltos e ficara preso a uma cadeira de rodas, mas que nada disso tinha esmorecido a sua paixão pelos cavalos, aliás nunca se lembra de ter visto aquele senhor triste. “Estás cada dia mais pesada” costumava dizer-lhe quando se sentava nas suas pernas, “Qualquer dia em vez de te sentares aqui vou ver-te sentada nela” dizia apontando para a égua que parecia uma bailarina tal a graciosidade dos seus passos. O picadeiro ficava no extremo da vila, junto a um ribeiro atravessado por uma pequena ponte demasiado estreita para a passagem dos carros, que antes era utilizada pelas carroças e gado que era levado para as pastagens. Agora apenas era usado por algumas pessoas que faziam jogging, por alguns alunos de equitação, e pouco mais. Mas nas suas aventuras imaginárias, ela atravessava a ponte montada na sua égua e juntas atravessavam os arbustos no topo do monte atrás dos quais se avistava ao longe as aldeias vizinhas, vultos a que ela chamava reinos de príncipes e princesas. No fim do treino, ela despedia-se do seu amigo, o Rei Sentado, como ela lhe chamava, com um beijo e um efusivo abraço e corria para ajudar o pai a lavar a égua. Ele adorava crianças, e antes do acidente sonhava com uma família grande, mas a cara desfigurava tinha-lhe mostrado que vivia numa sociedade cega de valores, por isso gostava ainda mais dos animais, e daquela pequena que o acarinhava sem se importar com a imagem do seu rosto. Quando há uns tempos descobriu que tinha uma visão fraca devido a uma malformação de nascença, quis oferecer uma viagem e um tratamento no estrangeiro, mas foi gentilmente recusada pelos pais para quem a sua filha via melhor o que era realmente importante e o suficiente para ter uma vida normal. Tivessem outros a sabedoria desta gente simples, pensou na altura. Nunca mais insistiu, mas sabia que aquela menina um dia ia deixar a sua marca por onde passasse, como já tinha deixado para sempre em si. 

Ao meu lado reparei que fechava o pequeno bloco e o guardava na bolsa da mochila. Vendo que a observava, olhou-me a sorrir, meteu as mãos nos bolsos do casaco e retirou uma fotografia. Era uma égua linda, branca com crista creme, quase dourada. “Hoje vou escolher o meu fato de cavaleira e umas fitas cor de rosas para a minha égua...” disse orgulhosa “Vamos desfilar nas comemorações dos 50 anos da praça de touros da minha terra!”. Passou mais uma vez os dedos pela fotografia esbatida decerto de tanto a pegar. Guardou-a no bolso, e tirou uns grossos óculos que colocou na sua face rosada. Não fosse aquele sorriso enorme, pensaria que se perdia debaixo deles. Mas o seu ar despachado e seguro, quando pegou na mochila e saiu pela porta, depressa me fez esquecer aquelas lentes demasiado pesadas para tão tenra idade. Resolvi acrescentar um novo item na minha lista de resoluções para o novo ano “Sonhar de olhos abertos e olhar de olhos fechados”..e claro…ser feliz, porque a felicidade não está naquilo que não temos mas naquilo que fazemos com o que temos .