Na gare de um
apeadeiro, caminhando lado a lado, meio desajeitados, dois corvos olhavam com
uma certa displicência para as carruagens do comboio que passava, como quem
observa uma nuvem passageira sem lhe dar qualquer importância. Apenas uma
observação que me colocou um esboçar de um sorriso no semblante ainda meio
adormecido. Não pelo facto em si, mas por me aperceber que ainda consigo
observar estes pequeninos nadas que se atravessam perante nós ao longo do dia,
e que na sua maioria nem nos apercebemos.
Assusta-me a ideia de na luta desigual para tentar
sobreviver me esqueça de viver. De na corrida para me manter à tona de água, me
aperceba que aquilo a que chamávamos de sociedade mais não é que um mar de
corpos unicelulares, tentando acompanhar as ondas e as marés sem sucumbir á
força das correntes. Não me assusta os desafios que sei que todos teremos pela
frente, mas algo em mim grita quando percorro as ruas onde antes se cruzavam
pessoas, agora desertas e sombria, transformadas em lugares onde foram pilhadas
as reservas de compaixão, de respeito, de consciência e de solidariedade,
deixando ficar apenas a mágoa, a desilusão, o desalento e a tristeza a escorrer
ao longo das bermas, arrastando atrás de si os que vão caindo em cada esquina.
Gosto de pensar que quando se fala em supérfluo, todos entendem que esse é
aquele extra que nos dá um prazer efémero, instantâneo, mas que não deixa
recordações sólidas. Que nunca seja considerado supérfluo o tempo que dedicamos
a quem gostamos, que nos lembremos que o prazer está na partilha e não na posse
de algo que se não existisse jamais deixaria saudade.
Assusta-me quando chego ao fim do dia e não trago nos
olhos o olhar de algo ou alguém que me marcou durante o dia, pois percebo que
perdi um dia inteiro de oportunidades de viver e observar o que me rodeia.
Sentir o frio da sombra de quem se esconde na penumbra da torre dos sentidos
sem ousar lá entrar. O desconforto de um fato que não é feito à nossa medida e
que nos torna tão incomodamente igual a tantos outros que se levantam, caminham
e deitam sem nunca escrever uma única linha naquelas que deviam ser as páginas
da nossa autobiografia.
Ainda trago o sorriso daquela imagem, na berma da
autoestrada, de dois seres que decerto partilharam uma imensidão de linhas, que
viraram em cada pequenino caminho na ânsia de descobrir um lugar por detrás dos
campos plantados, das planícies lavradas e dos riachos que fogem do rio em
direção aos vales. Imagino-os tocando as asas e olhando-se por cima dos
pequenos bicos, carregados de esperança, voando sobre as pedras que se acumulam
nos sopés dos montes, e bebericando nas poças que se escondem nos seus
socalcos.
Agarro-me a essa imagem tão simples e sacio a sede da
alma que se encontra entorpecida, e deixo que retire de cada um dos meus
pensamentos e devaneios sonhadores aquela magia que faz de cada dia de cada
momento algo especial, que afasta a venda com que as obrigações e
responsabilidades toldaram o nosso olhar, que enche de ternura o nosso
sorriso e de carinho o nosso partilhar.
Assusta-me, mas agarro-me aquele algo que me faz olhar
pela janela do comboio nos fins de tarde e ficar extasiada com a bola
laranja que toca o horizonte, que me faz
apreciar aquele abraço bem apertadinho que me é oferecido sem nada perguntar, e
que me permite ser dona do meu tempo e não escrava do seu pulsar…segundo após
segundo, não deixa de ser apenas um pulsar e não é nem nunca será o bater de um
coração que nos lembra cada dia e cada instante da bênção que é poder esta
aventura da vida disfrutar.
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