Todas as noites coloco o
despertador para as 6 horas e 10 minutos, e ainda que intencionalmente o faça
com o objetivo de me deliciar com o prazer da preguiça que vai até alinhar os
dois ponteiros do relógio, a verdade é que o meu corpo e mente têm na realidade
um horário muito próprio, e alheios á minha vontade, alinham o seu despertar
para as 10 para as 6 . Ainda tentei ser irreverente e não ceder a tais
caprichos, mas como bem sabemos somos meros escravos de um corpo e
mente com vontade própria. Levanto-me, e com os olhos ainda semifechados, abro
as portadas que dão para o alpendre, faça chuva, vento ou sol, com ou sem claridade,
sento-me na velha cadeira de verga, e fico num estado quase patético de
contemplação da paisagem que me é oferecida, fumegante como o chá que trago na
caneca, rica de sabor como o earl-grey que se dilui em labaredas castanhas na
água quente perfumando-a para meu deleite. No telheiro da churrasqueira, as
telhas do beiral não estão tapadas, e a azáfama do vai e vem de pássaros é
especialmente notável de madrugada. Vêm das árvores, direitos às telhas, e
acertam sem vacilar nas curvaturas onde fazem os seus ninhos. È verdade que
este fenómeno é comum de ver em vários locais, desde que observemos. Existe uma
diferença enorme entre olhar e observar. O primeiro é um ato pontual, de
segundos, em que a cabeça analisa imagens que lhe são transmitidas pelos olhos
e lhes atribui uma informação. Já observar é um ato explicito, em que
procuramos as imagens, deixamos o olhar preso nos pormenores, e fazemos questão
de analisar cada uma das imagens, envolvemos o sentir, damos voz à
alma e por muito raciocínio que coloquemos nessa observação sabemos, que terá
sempre um toque menos objetivo mas não por isso menos real daquilo que não
queremos apenas ver mas ser capazes de descrever.
Li um dia destes sobre o eterno
desejo do homem de conseguir voar, e descobri que na realidade os pássaros
voam, não por baterem as asas, mas por usarem as características das mesmas
para planar. O bater das asas serve para dar impulso e contrariar a força da
gravidade, mas o voar consiste exatamente nesse planar, aproveitando as massas
de ar que se formam por debaixo da curvatura das asas para manter o corpo a uma
certa altura e em movimento. E se é verdade que nasceram com uma fisionomia que
lhes permite planar sem esforço, também é verdade que para se manterem imóveis
acima do solo requere um enorme esforço de bater as asas, que quando comparado
com o seu tamanho é ainda mais inacreditável, que o consigam fazer durante
tanto tempo. Quando as crias estão no ninho, os pais permanecem á entrada,
mesmo por debaixo da telha, batendo freneticamente as asas, tentando manter uma
posição estável enquanto seguram a comida no bico e a colocam nos bicos
minúsculos de cada um dos filhos. Fico ali presa naquela imagem, a observar a
forma como conseguem manter-se na mesma posição e o esforço que esse gesto
deverá exigir dos seus pequenos corpos. Vão e vêm repetidamente sem nunca
mostrarem sinais de cansaço. Não conheço a sua linguagem, mas decerto daria
para notar algum desprendimento dos progenitores perante o piar desenfreado dos
filhos a pedirem alimento, caso se cansassem desta rotina, e no entanto todos
os dias, ali estão, num esforço físico descomunal, e ao mesmo tempo planando
com uma suavidade e beleza invejável.
Coloco os pés para cima e repouso
a cabeça nos joelhos, afastando o olhar desta correria de bater de asas para a
linha da autoestrada, onde os carros passam a um ritmo já bastante cadenciado.
Daqui a alguns minutos também eu serei mais um carro a passar em mais uma
estrada, não será uma viagem bonita como o planar do pássaro, mas na realidade
faço a viagem pelos mesmos motivos, garantir o sustento das crias. Não o faço
por obrigação, como decerto não o farão eles, mas faço-o por amor. Uso a
palavra que um dia alguém inventou para denotar um sentimento que não tem
tamanho, não tem princípio nem tem fim. Não tendo forma, preenche-nos, e embora
sem descrição exata, sentimo-lo com todos os seus contornos. È um privilégio
nosso, a criação de palavras para descrever atos, sentimentos e objetos, mas
agora que penso na palavra acho que a mesma me parece escassa para a forma como
os animais de forma tão singular e simples demonstram uma devoção, aqueles por
quem nutrem esse sentimento, alheios às suas próprias necessidades,
inconscientes do esforço que exige a prática do mesmo.
A capacidade de analisar e
catalogar sentimentos, vem com um efeito secundário de os tentar contornar,
dimensionar, evitar e temporizar. Reduzimos o mais puro sentir e consequente
agir a um pré e pós sentimento…passamos a infância toda a ser ensinados a
controlar os sentimentos e depois passamos o resto da vida em busca daquilo que
outrora fora genuíno e puro. A consciência da dor faz com que andemos na vida
carregados de palavras que não nos dizem mais do que outras palavras, faz com
que evitemos caminhos onde o sentimento reina porque sabemos que aí, nesses
lugares, as palavras são consumidas pelo silêncio que cobre a cumplicidade dos
corpos que se entregam num diálogo implícito, e o tempo é apenas um rio que
corre vezes sem conta debaixo da mesma ponte. Controlamos o tempo mas nunca
temos tempo, manipulamos os sentimentos mas nunca o entendemos, e achamos que
todo e qualquer gesto ou ato deve ser catalogado com base no esforço e tempo
que exige. A vontade, aquilo que nos devia mover, passou a ser determinada,
quando devia ser um vento que soprava e nos empurrava para sentires desmedidos,
atos imprevistos, e gestos genuínos.
Diz-se que a vontade move
montanhas, e eu sei, porque o sinto todos os dias de manhã quando acordo, e me
deixo levar pelo pensamento num planar tão profundo que sinto que os braços
abrem como que abraçando a Vida, e chego ao fim do dia, sentada naquela mesma
cadeira, sem os pássaros por companhia, mas um luar que se estende como um fio
ao longo do horizonte, com a certeza de ter colocado os pés na terra, e
caminhado com o coração nas mãos, um sorriso na alma e a força de um sentimento
que não é passível de ser medido com uma ou muitas palavras.
Posso não saber voar no sentido
da palavra como a conhecemos, mas afinal voar não é apenas a palavra, é
aproveitar o que a vida nos dá, e usar aquilo de que somos feitos para chegar
mais longe...posso voar, vencer a gravidade do supérfluo, e planar em cada
sopro de sentimento que não controlo, apenas bebo, ávida, num brinde diário ao
tempo sem hora marcada.
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