Uma das muitas coisas boas
de viver no campo, é que até o dia mais cinzento e frio tem o seu encanto, ou
se calhar sou eu que teimo ver em tudo mais do que transparece á vista, talvez
por ser uma sonhadora nata, que mesmo com o passar dos anos, dos trambolhões e
desilusões, continua a achar que vale sempre a pena continuar esta grande
aventura que é viver. Até o simples passar da mão pelo vidro embaciado, os
dedos molhados, o pássaro que beberica lá fora numa das muitas pocinhas do
pátio, os mil e um tons de cinza que mancham o amanhecer tapando um sol que
teima em chegar…enfim…Talvez por ter perdido mais uns minutos neste ritual em
que sacio a sede de novidade no preâmbulo do novo dia, por pouco o comboio
partia sem mim. Ofegante, entrei na última carruagem e sentei-me sem sequer
olhar á volta para escolher o lugar. Só quando pousei as pesadas pastas que
carregava reparei que a carruagem estava completamente vazia exceto pela minha
companheira de banco, que me olhava curiosamente. Decerto esta era a sua
carruagem diária e estaria a imaginar o porque de com tantos lugares me ter
sentado exatamente a seu lado. Acomodei os meus pertences aproveitando para a
observar. Não devia ter mais de 10-11 anos. Trazia um gorro cachecol e luvas
rosa, uma saia de ganga com uns collants azuis-escuros, e um casaco demasiado
grande para a sua franzina figura, mas que ostentava com orgulho, talvez por
ter sido dado por alguém especial, ou simplesmente escolhido por si. Quando na
paragem seguinte entraram mais duas pessoas na carruagem, percebi que as olhava
da mesma forma, primeiro com curiosidade, depois esboçando um sorriso,
alternando o olhar por quem a rodeava e pela janela onde a paisagem passava
como que num filme. Às vezes franzia o sobrolho, outras o sorriso era mais
largo, mas reparei que não parava de enrolar e desenrolar o fio do casaco entre
os seus pequenos dedos. Por alguma razão o meu olhar não ficou retido nesta
imagem, antes fechou-se perante a insistência de uma memória em tomar o leme
desta viagem. O comboio era outro, e levava-me invariavelmente ao mesmo lugar,
a escola. Sendo o destino tão usual, a verdade é que todos os dias corria com a
mesma vontade para o apanhar, e todos os dias desobedecia ás recomendações da
minha mãe para que não fosse pela linha, mas era mais forte do que eu, aquele
saltitar entre as tábuas , o sentir nos pés o tremer do ferro sempre que o
comboio no sentido contrário passava, as linhas cruzadas que por magia mudavam
o rumo das pesadas carruagens, os objetos perdidos que se destacavam entre as
sujas pedras que envolviam os carris, um sem número de pequenos nadas que
saciavam a minha sede de sentir. Já nessa altura me divertia a olhar as pessoas
á minha volta imaginando as suas vidas e o destino das suas viagens. Olhei de
novo a minha acompanhante, e reparei que tinha tirado uma caneta e um pequeno
bloco de papel, onde agora desenhava o que me pareceu ser uma estrada que
atravessava uma ponte de pedra sobre uma ribeira em direção a um molho de
arbustos. Estranhei a ausência de um personagem, mas percorria com os dedos o
esboço da estrada enquanto olhava pensativa para a paisagem que mudava á
passagem do comboio.
Adorava andar de comboio,
sentir nos pés o passar das rodas em cima dos carris, os vultos que entravam e
saiam da carruagem, o silêncio quebrado por os sons que emitiam, para muitos
passariam despercebidos, mas para ela eram mais um pormenor que desejava
guardar. Todas as semanas ansiava pelo dia em que ia ter com o pai a Lisboa
para a consulta dos olhos. Provavelmente nunca veria muito mais do que já via,
mas isso era para ela secundário, pois a pouca visão que tinha era superada
pela sua farta imaginação. Aliás considerava-se especial, porque conseguia ver
o que aos outros a visão demasiado perfeita lhes negava. Não era a consulta que
a entusiasmava, mas a viagem, e hoje era um dia ainda mais especial.
Vivia numa vila com
pretensões a cidade, embora tivesse nascido numa aldeia vizinha onde os avós
ainda moravam e o seu lugar predileto para passar férias. A sua casa ficava
mesmo em frente á praça de touros, e desde pequena que se lembra de se sentar
ao colo do pai na varanda ouvindo os barulhos nos dias de tourada. O pai,
achava imensa graça às suas expressões, e dizia-lhe que era uma verdadeira
aficionada, palavra que só mais tarde entendeu. A verdade é que todo aquele
ritual, os momentos de silêncio em que o forcado se preparava para a pega, as
palmas de triunfo, o bater dos cascos do cavalo na terra e até o respirar
pesado e selvagem do touro quando é solto para a arena, lhe chegavam com uma
clareza que não sabia explicar. Os pais trabalhavam no picadeiro, e todos as
tardes quando vinha da escola, sentava-se em cima dos montes de palha e imaginava
mil e uma aventuras em cima de uma égua de crista dourada. Só descia do alto do
seu castelo de palha quando via chegar o dono da sua égua preferida do
estábulo. Vinha todos os dias ás 5 em ponto, conversava um pouco com o seu pai
para saber dos seus cavalos, mas era a égua que vinha ver o seu pai a
trabalhar. Ela sentava-se ao seu colo enquanto a viam treinar os movimentos de
dressage. Era linda, não podendo especificar bem a sua cor, tinha a certeza que
era clara, com a crista enrolada numa trança com fitas coloridas, e um cheiro
inconfundível. Do dono sabia apenas que tinha caído durante uma prova de saltos
e ficara preso a uma cadeira de rodas, mas que nada disso tinha esmorecido a
sua paixão pelos cavalos, aliás nunca se lembra de ter visto aquele senhor
triste. “Estás cada dia mais pesada” costumava dizer-lhe quando se sentava nas
suas pernas, “Qualquer dia em vez de te sentares aqui vou ver-te sentada nela”
dizia apontando para a égua que parecia uma bailarina tal a graciosidade dos
seus passos. O picadeiro ficava no extremo da vila, junto a um ribeiro
atravessado por uma pequena ponte demasiado estreita para a passagem dos
carros, que antes era utilizada pelas carroças e gado que era levado para as
pastagens. Agora apenas era usado por algumas pessoas que faziam jogging, por
alguns alunos de equitação, e pouco mais. Mas nas suas aventuras imaginárias,
ela atravessava a ponte montada na sua égua e juntas atravessavam os arbustos
no topo do monte atrás dos quais se avistava ao longe as aldeias vizinhas,
vultos a que ela chamava reinos de príncipes e princesas. No fim do treino, ela
despedia-se do seu amigo, o Rei Sentado, como ela lhe chamava, com um beijo e
um efusivo abraço e corria para ajudar o pai a lavar a égua. Ele adorava
crianças, e antes do acidente sonhava com uma família grande, mas a cara
desfigurava tinha-lhe mostrado que vivia numa sociedade cega de valores, por
isso gostava ainda mais dos animais, e daquela pequena que o acarinhava sem se
importar com a imagem do seu rosto. Quando há uns tempos descobriu que tinha
uma visão fraca devido a uma malformação de nascença, quis oferecer uma viagem
e um tratamento no estrangeiro, mas foi gentilmente recusada pelos pais para
quem a sua filha via melhor o que era realmente importante e o suficiente para
ter uma vida normal. Tivessem outros a sabedoria desta gente simples, pensou na
altura. Nunca mais insistiu, mas sabia que aquela menina um dia ia deixar a sua
marca por onde passasse, como já tinha deixado para sempre em si.
Ao meu lado reparei que fechava o pequeno bloco e o guardava na bolsa da mochila. Vendo que a observava, olhou-me a sorrir, meteu as mãos nos bolsos do casaco e retirou uma fotografia. Era uma égua linda, branca com crista creme, quase dourada. “Hoje vou escolher o meu fato de cavaleira e umas fitas cor de rosas para a minha égua...” disse orgulhosa “Vamos desfilar nas comemorações dos 50 anos da praça de touros da minha terra!”. Passou mais uma vez os dedos pela fotografia esbatida decerto de tanto a pegar. Guardou-a no bolso, e tirou uns grossos óculos que colocou na sua face rosada. Não fosse aquele sorriso enorme, pensaria que se perdia debaixo deles. Mas o seu ar despachado e seguro, quando pegou na mochila e saiu pela porta, depressa me fez esquecer aquelas lentes demasiado pesadas para tão tenra idade. Resolvi acrescentar um novo item na minha lista de resoluções para o novo ano “Sonhar de olhos abertos e olhar de olhos fechados”..e claro…ser feliz, porque a felicidade não está naquilo que não temos mas naquilo que fazemos com o que temos .
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