quinta-feira, 12 de abril de 2012

Uma folha branca


A gare está em obras e por isso só existe um lugar onde se pode entrar para o comboio, na primeira carruagem. Ao contrário do que se possa pensar a primeira carruagem não é igual ás outras, talvez por em tempos ter sido de primeira classe, na altura em que os regionais levavam as senhoras do Porto á capital com os filhos, envoltas em mordomias. Tem menos lugares, e uns bancos junto a uma casa de banho de um lugar só. Num desses bancos um homem de bata branca de médico e um estetoscópio ao pescoço, parece deslocado desta realidade, como se não pertencesse a esta cena ou ato. Olha com ar ausente para quem entra, e volta a sucumbir aos pensamentos que decerto o atormentam, pela expressão que traz estampada no rosto desalinhado. Nas mãos apenas as chaves de um carro e uma folha branca, rasgada de uma sebenta.
Não se lembra de ter entrado no comboio, nem de onde veio, mas recorda-se das últimas 24 horas de forma tão intensa que chega a temer ter ficado preso neste pedaço de tempo.
O dia estava escuro, como estava sempre que saía de casa, ou pelo menos assim lhe parecia.
Sempre a mesma frase "Bom dia Sr.Doutor". Olhou o porteiro e sorriu, não por simpatia mas porque assim manda a etiqueta.
Entrou no carro e arrancou sem grande vontade. Olhou pelo retrovisor e viu a torre, imponente como todo o império que construiu. Devia sentir orgulho, mas só sentia mágoa. O vazio duma vida sem cor.
De novo a mesma frase "Bom dia Sr.Doutor". Olhou para as enfermeiras, perdidas entre papeis e seringas,  e pensou na frieza que os hospitais aparentam. Como ele. Tratam de corpos mas não sabem quem são as almas que os habitam. Vestiu a bata e começou a sua ronda. Pensou nela, pensou em tudo o que disseram e pensou naquilo que nunca a deixou dizer. Não podia. Nunca iria poder. Ela não compreenderia, e se compreendesse, conseguiria ele alguma vez mostrar-lhe o que lhe ia na alma. Não. Não arriscava. Preferia não ir ao céu para não correr o risco de cair a terra! Estava demasiado em jogo.
Olhou para o homem ligado ao ventilador. Tinha pouco mais de 20 anos. Um acidente de automóvel tirou-lhe tudo o que tinha na vida, só não lhe tirou a vida. Que ironia. Parecia a história da sua vida, ao contrário. A medicina tinha-lhe dado tudo o que tinha na vida...menos uma vida. Aquela que ela resgatou, e lhe ofereceu. Aquela que ele orgulhoso não vendo a grandiosidade da oferta, cego, recusou.
O apitar do Bip tira-o do pensamento tão pouco usual em si. Encolhe os ombros e dirige-se para o Bloco de Urgências. Na maca, uma mulher com cerca de 35 anos, traz a cara coberta de sangue. Um acidente de automóvel, a caminho do Hospital, relacionado com uma paragem cardíaca. Começa a fazer a reanimação, enquanto ouve o relatório dos técnicos do INEM que a trouxeram, mas a paciente teima em não responder.
A enfermeira da secretaria, entra e pergunta o nome da paciente. E num segundo o mundo para, quando ouve as palavras que lhe caiem em cima como facas afiadas diretas ao coração. As mãos ficam paralisadas, imóveis e geladas, sobre o corpo sem vida. De repente sente-se perdido numa escuridão de pensamentos onde o nome dela faz um eco ensurdecedor nos seus ouvidos.
Perdendo a compostura que lhe é habitual, agarra-se a ela, roga-lhe que volte, suplica que o perdoe. O momento apanha de surpresa os restantes médicos e enfermeiras, habituados a um médico frio, distante, exigente, que não perdoava uma  falha, e que ali, naquele instante, cometia a mais grave de todas, envolvendo-se com uma doente!
Mas ele já não via nada, a sua vida morria naquele corpo e ele lutava desesperadamente por resgatá-la, indiferente ao mundo. Os minutos passam e nada. O corpo que jazia perante ele, já não albergava uma alma. Tinha sido tudo em vão. Maldita medicina, pensou, deu-lhe tudo o que tinha e tirou-lhe o que dinheiro nenhum poderia alguma vez lhe devolver. Saiu sem despir a bata, meteu-se no carro, e seguiu sem rumo. Em frente não via nada, nada a não ser uma folha branca, aquela em que lhe devia ter escrito. Nunca lhe tinha pedido nada, mas ontem rasgando uma folha do seu diário onde escrevia textos lindos que ele adorava ler, pediu-lhe que pintasse aquilo que sentia por ela.
E ele não conseguiu esboçar nem um risco, nada, não soube dar cor, a algo que se recusava ver. Olhou para o céu e na tarde de outono que se estende no horizonte, consegue ver tão nítidas, as cores dum dia perfeito. Assim deveria ter pintado, assim a sentia a ela. Tão simplesmente perfeita. Acelerou, e mesmo não olhando o caminho sabia qual o destino, o único onde era simplesmente ele. O carro percorreu a marginal que se estende nas margens da baía de faces espelhadas, ainda dormindo sobre a cumplicidade da lua e abraçada a praia deserta salpicada de pequenas sardas de pegadas. Do outro lado, o mar imenso, de um azul-escuro forte, escondido atrás do nevoeiro tão característico desta terra, insinuando-se em ondas cadenciadas de um branco imaculado, misturando as suas águas revoltas com as doces e cálidas de sua enseada.
Estacionou junto ao cais, e desceu as escadas de pedra, deitando-se em silêncio, como que tentando fundir-se na paisagem. Gostaria de ali ter ficado sem olhar o tempo, até o corpo adquirir a tonalidade das algas, diluindo-se na cor da areia, entranhando-se na textura das rochas, até que por fim os seus olhos despidos de todas as lágrimas pudessem pestanejar sem assustar as gaivotas.
Tão parecido é o amor com a água. Doce ou salgada, correndo em rios, que se esgueiram entre dois vales, sinuosos, beijando aqui e ali as margens fartas de arvoredos. Também nele mergulhamos e nos perdemos, trazemos o trago salgado, o rosto molhado e na alma gotas de momentos que jamais esqueceremos. Saciamos a nossa sede de companhia quando bebericamos aqui e ali no seu estado mais puro, isento de cor e sabor, não deixa saudade mas acalma a secura de uma travessia pelo deserto da solidão.
Navegamos, ostentando a bandeira da paixão, sem leme nem comandante, e á deriva naufragamos tantas vezes, buscando depois aquele recanto, aquela praia tão conhecida em que ele amor dormita, se despe de paixão e se veste de amizade.
Nasce em nós e desagua por entre ramais de conhecimento em oceanos de carinho, onde em vagas constantes, nos arrasta sobre dunas de prazer uma e outra vez, sobre a cumplicidade da lua.
Se for pequeno, e cair em pequenas poças, evapora-se, é efémero e não deixa mais que um desconforto que escorre pelos olhos com pouca convicção, sem deixar rasto ou lembrança.
Sacudiu as mãos da areia, e os pensamentos da alma, e levantou-se caminhando descalço sobre as águas frias. Um dos grandes prazeres da vida, uma praia num entardecer de Outono. Olhou ao longe o navio cruzeiro que se preparava para cruzar o oceano, e imaginou-a lá, a sua doce e querida Madalena, contemplando apaixonadamente este mesmo mar, os ombros envoltos no abraço de alguém que decerto a mereceria, olhando-o com ternura do fundo daqueles olhos avelã tão únicos. Assim deveriam todos amar, sem posse, apenas desejando a felicidade para quem se ama, assim o amava Madalena, nunca lhe exigindo nada, aceitando-o como era, e ele brincando com a vida foi adiando o que nunca entendeu ser já parte dele. Agora apenas lhe restava a folha branca, aquela folha em que tantas vezes brincando ela lhe pediu que pintasse com as cores do seu amor. 

1 comentário:

  1. Como uma folha branca pode ser dolorosa... É maior a tristeza de não ter sabido reconhecer a felicidade, do que a dor de a perder...
    Vou seguir o seu blog, voltarei mais vezes! :)

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