quinta-feira, 12 de abril de 2012

O outro lado da minha janela


Só por si, o conceito de janela, é sinónimo de divisão entre dois lados, aquele onde estamos e o outro que olhamos e tantas vezes utilizamos como palco dos nossos pensamentos. Desde pequenos que nos habituámos a esse objeto que nos resguardava das intempéries do exterior, ao mesmo tempo que nos alimentava de uma curiosidade difícil de resistir. Uma contradição entre a proteção da segurança do que conhecemos e o desafio da imensidão imprevisível do desconhecido.
Para os que trabalham, esta é a companhia de todos os dias, inalterável na sua estrutura, imperceptivalmente distinta em cada segundo. Rica em histórias que contempla dia e noite na  cumplicidade de outras janelas que como ela fazem a vigília de uma cidade que nunca dorme.
Olhando-a de frente, não vejo o mar, nem sequer um pedaço de rio, e o único laivo de natureza que consigo detetar, são os dois vasos com tiarella que orgulhosamente reinam na varanda do 2º andar desta fachada que serve de  pano de fundo ao lado de fora da minha janela. São na realidade duas fachadas idênticas, uma de um cinza gasto a outra de um amarelo-torrado esbatido, curiosamente ambas apenas mostram sinal de vida no segundo andar. Nas janelas desprovidas de portadas, umas cortinas de  renda outrora brancas, agora de um cru pintado pelos raios de sol. Ao tentar descrever, reparei que afinal não são idênticas, mas opostas no formato das janelas, algo que nunca tinha reparado, sempre pensando que a única distinção era a cor das fachadas e os semblantes que de dia passam perante os meus olhos um teatro de vida tão real que por vezes penso fazer parte dele. As janelas do meio, suponho que sejam de uma saleta, são compostas por quatro portadas, e se numa existe uma parte superior em forma de meio circulo debruado com uma saliência de pedra, do outro lado é apenas um retângulo sem qualquer adorno, simbolicamente poderia imaginar que o arquiteto quis simbolizar a imagem de um casal de prédios de baixa estatura, ele mais rígido nas linhas, mas assombrosamente mais resistente ao tempo que vai passando, "ela", mais delicada nas linhas e com dois brincos nos telhados. "Ele" com um estrondoso bigode trabalhado em pedra como único sinal de ostentação, na janela única que compõe o terceiro andar e águas furtadas. Estão todos os dias ali abraçados, com dois "filhos" pequenos de dois pisos, um de cada lado, de janelas com vitrais esbatidos, um falecido, e de janelas cobertas de uma fachada de cimento, representa apenas a imagem de uma anterior existência, o outro ligeiramente separado, renovado e de pintura fresca, como que anunciando a sua emancipação. Com chapéu alto, herdou da "mãe" os topos da janela redondos e debruados, do pai herdou a cor e os fartos bigodes, e chamam-lhe de casarão, quiçá num elogio ao seu belo porte e delicado trato para com todas as meninas que nele se encostam languidamente, vendendo o corpo para salvar a alma. A brisa que sopra entra pelas portadas entreabertas da janela do segundo andar, e como é costume todos os dias por esta hora, o semblante corcunda e de cabelo grisalho da velha senhora embrulhada num roupão de flanela cor-de-rosa, aparece na varanda. Olha por momentos, debruçada sobre o ferro ferrugento, a estrada. Passa a mão no cabelo, pega numa toalha deixada sobre um velho banco de madeira, parcialmente tapado pelos vasos de folhas mortas, e fica ali, junto a ombreira da porta, olhando repetidamente para dentro, até que deitando um último olhar á estrada onde os carros passam indiferentes á sua existência, fecha as portadas, para só as voltar a abrir no outro dia. Ao lado, a portada abre-se e fecha-se várias vezes durante o dia, ninguém sai, apenas se vislumbra, quando o vento sopra um pouco mais, por detrás das cortinas, um semblante sentado numa cadeira que baloiça, uma sombra que vai e vem, em frente de um velho televisor colocado em cima de uma pequenina mesa com um pano de renda branco. Várias vezes ao dia, passam outras sombras em frente do vulto que baloiça, nunca ficam muito tempo, suponho que apenas o suficiente para deixar ou ir buscar algo. Fico a pensar na solidão das pessoas numa cidade tão cheia de gente. E se, e se a janela não estivesse virada para o meu lado, e se a janela estivesse virada para dentro de cada um deste prédios, e se estes semblantes que vivem a poucos metros de distância se pudessem ver por uma janela imaginária, e se.talvez houvesse janelas que seriam a luz dos seus dias, talvez deixasse de ser uma lembrança penosa de uma vida lá fora que já não podem ter, mas uma vivência rica de outras vidas se calhar tão parecidas com as suas..Uma janela...a janele dos meus dias...traz-me imagens que sendo tão iguais, são todos os dias ricas em pormenores. Não são apenas a entrada dos raios de sol, os sons da chuva a bater nos seus vidros, não são apenas o olhar curioso sobre o pedaço de cidade que me rodeia, deste cruzamento de estradas e de vidas, onde se deixam momentos, onde se vendem emoções, onde se perde e se ganha, tudo e nada, num correr de segundos em que as pessoas se cruzam neste cruzamento de estradas, umas indiferentes e sem tempo, outras com todo o tempo do mundo. È viciante este sentir por detrás da janela que é todos os dias cúmplice dos meus dias.

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