Só
por si, o conceito de janela, é sinónimo de divisão entre dois lados, aquele
onde estamos e o outro que olhamos e tantas vezes utilizamos como palco dos
nossos pensamentos. Desde pequenos que nos habituámos a esse objeto que nos
resguardava das intempéries do exterior, ao mesmo tempo que nos alimentava de
uma curiosidade difícil de resistir. Uma contradição entre a proteção da
segurança do que conhecemos e o desafio da imensidão imprevisível do
desconhecido.
Para os que trabalham, esta é a
companhia de todos os dias, inalterável na sua estrutura, imperceptivalmente
distinta em cada segundo. Rica em histórias que contempla dia e noite na
cumplicidade de outras janelas que como ela fazem a vigília de uma cidade
que nunca dorme.
Olhando-a de frente, não vejo o
mar, nem sequer um pedaço de rio, e o único laivo de natureza que consigo
detetar, são os dois vasos com tiarella que orgulhosamente reinam na varanda do
2º andar desta fachada que serve de pano de fundo ao lado de fora da
minha janela. São na realidade duas fachadas idênticas, uma de um cinza gasto a
outra de um amarelo-torrado esbatido, curiosamente ambas apenas mostram sinal
de vida no segundo andar. Nas janelas desprovidas de portadas, umas cortinas
de renda outrora brancas, agora de um cru pintado pelos raios de
sol. Ao tentar descrever, reparei que afinal não são idênticas, mas opostas no
formato das janelas, algo que nunca tinha reparado, sempre pensando que a única
distinção era a cor das fachadas e os semblantes que de dia passam perante os
meus olhos um teatro de vida tão real que por vezes penso fazer parte dele. As
janelas do meio, suponho que sejam de uma saleta, são compostas por quatro
portadas, e se numa existe uma parte superior em forma de meio circulo debruado
com uma saliência de pedra, do outro lado é apenas um retângulo sem qualquer adorno,
simbolicamente poderia imaginar que o arquiteto quis simbolizar a imagem de um
casal de prédios de baixa estatura, ele mais rígido nas linhas, mas
assombrosamente mais resistente ao tempo que vai passando, "ela",
mais delicada nas linhas e com dois brincos nos telhados. "Ele" com
um estrondoso bigode trabalhado em pedra como único sinal de ostentação, na
janela única que compõe o terceiro andar e águas furtadas. Estão todos os dias
ali abraçados, com dois "filhos" pequenos de dois pisos, um de cada
lado, de janelas com vitrais esbatidos, um falecido, e de janelas cobertas de
uma fachada de cimento, representa apenas a imagem de uma anterior existência,
o outro ligeiramente separado, renovado e de pintura fresca, como que
anunciando a sua emancipação. Com chapéu alto, herdou da "mãe" os
topos da janela redondos e debruados, do pai herdou a cor e os fartos bigodes,
e chamam-lhe de casarão, quiçá num elogio ao seu belo porte e delicado trato
para com todas as meninas que nele se encostam languidamente, vendendo o corpo
para salvar a alma. A brisa que sopra entra pelas portadas entreabertas da
janela do segundo andar, e como é costume todos os dias por esta hora, o
semblante corcunda e de cabelo grisalho da velha senhora embrulhada num roupão
de flanela cor-de-rosa, aparece na varanda. Olha por momentos, debruçada sobre
o ferro ferrugento, a estrada. Passa a mão no cabelo, pega numa toalha deixada
sobre um velho banco de madeira, parcialmente tapado pelos vasos de folhas
mortas, e fica ali, junto a ombreira da porta, olhando repetidamente para dentro,
até que deitando um último olhar á estrada onde os carros passam indiferentes á
sua existência, fecha as portadas, para só as voltar a abrir no outro dia. Ao
lado, a portada abre-se e fecha-se várias vezes durante o dia, ninguém sai,
apenas se vislumbra, quando o vento sopra um pouco mais, por detrás das
cortinas, um semblante sentado numa cadeira que baloiça, uma sombra que vai e
vem, em frente de um velho televisor colocado em cima de uma pequenina mesa com
um pano de renda branco. Várias vezes ao dia, passam outras sombras em frente
do vulto que baloiça, nunca ficam muito tempo, suponho que apenas o suficiente
para deixar ou ir buscar algo. Fico a pensar na solidão das pessoas numa cidade
tão cheia de gente. E se, e se a janela não estivesse virada para o meu lado, e
se a janela estivesse virada para dentro de cada um deste prédios, e se estes
semblantes que vivem a poucos metros de distância se pudessem ver por uma
janela imaginária, e se.talvez houvesse janelas que seriam a luz dos seus dias,
talvez deixasse de ser uma lembrança penosa de uma vida lá fora que já não
podem ter, mas uma vivência rica de outras vidas se calhar tão parecidas com as
suas..Uma janela...a janele dos meus dias...traz-me imagens que sendo tão
iguais, são todos os dias ricas em pormenores. Não são apenas a entrada dos
raios de sol, os sons da chuva a bater nos seus vidros, não são apenas o olhar
curioso sobre o pedaço de cidade que me rodeia, deste cruzamento de estradas e
de vidas, onde se deixam momentos, onde se vendem emoções, onde se perde e se
ganha, tudo e nada, num correr de segundos em que as pessoas se cruzam neste
cruzamento de estradas, umas indiferentes e sem tempo, outras com todo o tempo
do mundo. È viciante este sentir por detrás da janela que é todos os dias cúmplice
dos meus dias.
Sem comentários:
Enviar um comentário